O cílio do lobo

clarissa pinkola estés mulheres que correm com os lobos poema tradução Aug 28, 2022
As Criadoras
O cílio do lobo
6:13
 
Se você não entrar no mato, nada vai acontecer e sua vida nunca vai começar.

“Não vai entrar no mato, não vai”, eles disseram.

“Por que não? Por que eu não deveria entrar no mato esta noite?”, ela perguntou.

“Mora lá um lobo enorme e ele devora humanas como você. Não vai entrar no mato, não vai. É sério.”

Naturalmente, ela foi. Ela entrou no mato mesmo assim e é claro que encontrou o lobo, exatamente como eles haviam avisado.

“Viu, nós avisamos,” eles se gabaram.

“Isto é a minha vida, e não um conto de fadas, seus patetas”, ela disse. “Tenho que entrar no mato e tenho que encontrar o lobo, ou minha vida nunca vai começar.”

Mas o lobo que ela encontrou estava preso, sua pata presa em uma armadilha.

“Socorro, ai, me ajuda! Aiiiiiiii, aiiiiiii, aiiiiii!” chorava o lobo.

Socorro, ai, me ajuda!”, ele chorava, “e te darei uma recompensa justa.” Porque era assim que os lobos faziam em contos como este.

“Como vou saber que você não vai me machucar?”, ela perguntou — seu trabalho era fazer perguntas. “Como vou saber que você não vai me matar e me deixar aqui, em uma pilha de ossos?”

“Pergunta errada,” disse esse lobo. “Você vai ter que acreditar na minha palavra.” E o lobo outra vez começou a clamar e lamentar ainda mais, com mais força ainda.

“Ai, aiiiiiiiiii! Aiiiii! Aiiiii!
Existe apenas uma pergunta
que vale a pena, bela donzela,
uuuuuuuuuund
aiiiiiiiiiii
auuuuuuuuuuulm?”

“Ah seu lobo, vou arriscar. Pois bem, lá vai!” E ela abriu a armadilha e o lobo retirou sua pata e ela lhe fez uma atadura com ervas e capim.

“Ai, obrigado, gentil donzela, obrigado,” suspirou o lobo. E porque ela tinha lido muitas histórias do tipo errado, clamou, “Vai em frente, pode me matar agora, vamos acabar logo com isso”.

Mas não, isso não aconteceu. Ao invés disso, o lobo colocou a pata sobre o braço dela.

“Eu sou um lobo de outro tempo e de outro lugar”, ele disse. Ele arrancou um cílio do próprio olho e deu a ela, dizendo “Use isto e seja sábia. A partir de agora você vai saber quem é bom e quem não é tão bom assim; basta olhar através dos meus olhos e você verá claramente.
Por me deixar viver,
eu te convido a viver
como nunca antes.
Lembre, existe apenas uma pergunta
que vale a pena, bela donzela,
uuuuuuuuuund
aiiiiiiiiiii
auuuuuuuuuuulm?”

E assim ela voltou ao seu vilarejo,
feliz por ter ainda sua vida.
E dessa vez quando eles disseram,
“Fique aqui e case comigo,”
ou “Faça o que eu estou dizendo,”
ou “Diga o que eu quero que você diga,
e permaneça tão intocada
quanto no dia que nasceu”,
ela ergueu o cílio do lobo
e olhou através dele
e viu os seus motivos 
como nunca antes tinha visto.
E da próxima vez
que o açogueiro pesou a carne
ela olhou através do cílio do lobo
e viu que ele pesava seu polegar também.
E ela olhou para seu pretendente
que dizia “eu sou tão bom para você”,
e ela viu que seu pretendente
era tão bom para coisa nenhuma.
E dessa maneira e de outras,
ela se salvou,
não de todos,
mas de muitos
infortúnios.

Mais que isso, nesse novo olhar, ela não via só a malícia e a crueldade, e assim foi ficando com um coração imenso, porque olhava para cada pessoa e a pesava novamente usando esse presente do lobo que ela havia resgatado.

E ela viu aqueles que eram verdadeiramente generosos
e chegou perto deles,
ela encontrou uma parceria
e ficou todos os dias de sua vida,
ela discerniu os corajosos
e chegou perto deles,
ela identificou os fiéis
e se uniu a eles,
ela viu a confusão por baixo da raiva
e correu para oferecer alívio,
ela viu amor no olhar dos tímidos
e estendeu-lhes a mão,
ela viu sofrimento nos inabaláveis
e cortejou seu riso,
ela viu a necessidade no homem sem palavras
e falou por ele,
ela viu a fé nas profundezas da mulher
que dizia não a ter,
e reacendeu-lhe a chama em sua própria.

Ela viu todas as coisas
com o cílio do lobo
tudo que é verdadeiro
e tudo que é falso
e tudo que se volta contra a vida
e tudo que se volta para a vida,
e tudo que só é visto
através dos olhos daquilo
que pesa o coração com o coração
e não apenas com a mente.

Assim foi que ela aprendeu que é verdade o que eles dizem, que o lobo é o mais sábio entre todos. Se você ouvir de perto, o lobo em seu uivar está sempre fazendo a pergunta mais importante — não onde está o próximo alimento, nem onde está a próxima briga, nem onde está a próxima dança? –mas a pergunta mais importante
para ver aquilo que está dentro e atrás,
para pesar o valor de tudo que vive,
uuuuuuuuuund
aiiiiiiiiiii
auuuuuuuuuuulm?
uuuuuuuuuund
aiiiiiiiiiii
auuuuuuuuuuulm?
Onde está a alma?
Onde está a alma?

Vai entrar no mato, vai. Se você não entrar no mato nada vai acontecer e sua vida nunca vai começar.
Vai entrar no mato,
vai.
Vai entrar no mato,
vai.
Vai entrar no mato,
vai.

Esse trecho de The Wolf's Eyelash, poema em prosa original de C.P. Estés, foi publicado originalmente em 1970 em Rowing Songs for the Night Sea Journey, Contemporary Chants e reimpresso em Women Who Run With the Wolves: Myths and Stories of the Wild Woman Archetype, de Clarissa Pinkola Estés, Ph.D. Inédito em português brasileiro até a data desta tradução (2019), o trecho não se destina a fins comerciais e é publicado de boa fé. Todos os direitos permanecem reservados para C.P. Estés.

Mariana Bandarra assina esta tradução e é co-criadora do podcast Talvez Seja Isso. Na primeira temporada de Talvez Seja Isso, ela destrincha junto com Barbara Nickel os ensinamentos de Mulheres que correm com os lobos em uma linguagem acessível e honesta. Para escutar gratuitamente todos os episódios, você pode usar o aplicativo de podcast nativo do seu celular ou acompanhar a gente pelo Spotify ou YouTube.